Era a manhã do dia primeiro de março de 2017. Numa sala antiga, cercada por fotos de grupos de residentes já formados, eu me encontrava sentado na cabeceira de uma mesa retangular. À minha esquerda, um outro futuro residente estava sentado e calado. À minha direita, o chefe do serviço discutia com outros dois preceptores sobre assuntos triviais, ignorando o fato de eu já estar aguardando há um tempo para me apresentar. Impaciente e irrequieto, pensei em tentar quebrar o clima com o outro candidato e disparei: “E aí, tá pronto para se ferrar aqui no R1 comigo?” A conversa dos staffs imediatamente cessou, dando lugar a um silêncio sepulcral. O outro residente, Leandro, deu um sorriso amarelado. E foi assim que tomei meu primeiro esporro, antes mesmo de virar residente de Ortopedia e Traumatologia. O conteúdo não vem ao caso: o horário não permite. Aliás, nenhum horário permitiria. O que importa é que, desde esse momento fatídico até o presente momento, aprendi muito sobre teoria e cirurgia ortopédica, mas principalmente sobre a residência médica.
A começar pelas funções. Todos ganham a mesma bolsa, mas existe hierarquia. Peguemos o exemplo do R1. Ele cuida da enfermaria, da visita aos pacientes e da troca diária dos curativos. É encarregado dos exames de imagem dos pacientes e de sempre tê-los à mão. No centro cirúrgico, escova e prepara os pacientes para serem operados. Quando em campo, ocupa posições menos nobres como afastar, segurar ou tracionar membros. Em resumo, o R1 faz a parte braçal do serviço.
Já o R2 vive a melhor fase da residência. É o equivalente ao irmão do meio: não é o foco das atenções. Passa a entrar como auxiliar do R3, participando mais das cirurgias. Tirando o ambulatório, que é dever de todos, pouco tem a fazer. Os espirituosos costumam chamar tal período de RFérias.
Por último o R3. É o dono do bisturi no centro cirúrgico, opera o que ele quer. Tem a importante função de checar todo o material a ser utilizado nas cirurgias e de supervisionar os Rmenos. Seu dia a dia só fica ruim porque existe uma cobrança intensa por conta dessa palavrinha aqui: Título de Especialista da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia ou, para os mais íntimos, TEOT.
Uma das provas mais bem elaboradas para titulação feitas por uma sociedade, sendo inclusive referência para outras especialidades. Nesse momento, após os 3 anos de Residência em ortopedia, todo o conhecimento adquirido será posto à prova. Uma fase de prova objetiva, seguida pelas provas de habilidades cirúrgicas, habilidades ao exame físico, prova oral e, por último, um trabalho científico. É o objetivo final de todo residente, pois ostentar um TEOT é sinônimo de excelência.
Mas não para por aí. Depois de três árduos anos na residência, chega a hora de tomar uma nova decisão: escolher uma área de atuação para se especializar e fazer o R4. Importante ressaltar que esse não é um caminho obrigatório. Após se formar, você já é um ortopedista reconhecido pelo MEC e pode atuar livremente, mas na prática o caminho seguido pela maioria esmagadora é a especialização. Se tem alguma coisa que a Ortopedia te dá opção, é nesse quesito. Ombro e Cotovelo, Punho e Mão e Pé e Tornozelo compõem as dobradinhas, englobando duas áreas articulares. Quadril, Coluna e Joelho são as outras. Além disso, existem opções como Fixador Externo, Pediátrica, Onco-Ortopedia, Trauma e Desportiva. Mais recentemente, Dor virou oficialmente uma subespecialidade ortopédica e aumenta o leque de opções.
Coluna e Mão possuem duas coisas em comum: ambas são áreas que demandam mais dois anos de especialização (R4 e R5) e são as únicas em que a bolsa do residente é mantida. Em todas as outras você trabalha de graça. Coluna tem cirurgias extremamente complexas pela localização, cuidando não só dos desvios de eixo como a escoliose, mas também casos de compressão radicular/medular. Já Mão possui as cirurgias mais delicadas da Ortopedia, indo desde uma liberação do túnel do carpo até uma transferência nervosa a nível do plexo braquial. São considerados quase que cirurgiões plásticos no nosso meio. Quadril lida com muitos casos de artroplastia (leia-se prótese), mas também com doenças do quadril pediátrico e traumas.
Joelho é o grande chamariz, tendo nas cirurgias de reconstrução ligamentar e artroplastia seus principais pilares. Ombro está em alta, principalmente depois do advento do Crossfit, que tem nessa articulação sua maior prevalência de lesões. Pé e Tornozelo possuem uma vasta gama de cirurgias, principalmente pelas associações com vasculopatias, neuropatias e doenças congênitas do pé.
Sobre as especialidades não baseadas em locais do corpo, temos como primeiro exemplo a Ortopedia pediátrica. Tem a grata missão de cuidar das nossas crianças com distúrbios osteomusculares, mas a ingrata missão de muitas vezes ter que imobilizá-las. Se ninguém te falou ainda, criança e imobilização são palavras que não vão bem juntas na mesma frase!. A Traumatologia, apesar de fazer parte do cotidiano de qualquer residente da Ortopedia, possui uma especialização. Visa tratar as fraturas mais complexas e graves, como fraturas do acetábulo, platô e pilão tibial, e úmero proximal. Onco-Ortopedia possui uma pegada mais clínica, sendo responsável por uma área mais sensível da Ortopedia. Como qualquer especialidade oncológica, lida com perdas costumeiramente. Entretanto, a recompensa de uma cura é das mais gratificantes na medicina.
Desportiva é sem dúvida uma das mais queridinhas, inclusive sendo o motivo de muitos jovens médicos decidirem por ingressar numa residência ortopédica. A possibilidade de trabalhar e operar lesões relacionadas aos mais diversos esportes certamente tem seu charme. Coisa que não acontece com o Fixador Externo. Onze em dez pacientes pedem, antes de operar, para não colocar “aqueles ferrinhos pra fora”. O que poucos sabem: essa área de atuação lida com um conhecimento enorme em Matemática e Física, realizando alongamentos e transportes ósseos para tratar as deformidades mais bizarras da Ortopedia. Por último, mas não menos importante, a Dor. Essa área de atuação virou, no ano de 2019, oficialmente uma área de atuação ortopédica, podendo ser cobrada inclusive nas provas de Título.
Quanto aos serviços, há que se levar em consideração a seguinte frase: não existe residência perfeita. Alguns locais terão em seu forte a teoria e o academicismo, outros serão referência em trauma, outros terão material de ponta ou ainda serão fortes nas subespecialidades. Converso muito com meus colegas e reitero: não existe serviço perfeito. Minha dica para a escolha baseia-se em duas premissas: primeiro, faça uma autoavaliação. Qual o seu perfil? O meu, por exemplo, é o perfil do academicista, que tem paixão pela teoria e por replicá-la. Escolhi um serviço que preza por isso acima das outras coisas.
Decida sua prioridade! É fazer em um hospital militar? Enfoque em trauma? Eletivas (subespecialidades)? Escolha de acordo e não haverá erro. Segundo, converse com staffs e principalmente com residentes dos serviços. Eles estarão atualizados e por dentro dos prós e contras mais recentes.
Desejamos a vocês uma ótima escolha e uma excelente residência médica!
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